Ética e moral nos coletivos
Passar 1/6 da vida dentro de ônibus faz você elaborar teorias das mais variadas. Graças à minha (farta) experiência no assunto, formulei alguns preceitos sobre uma questão específica do comportamento humano dentro do bom e velho busão: o espaço visual.Ao entrar num coletivo, você se insere em um universo de significados bem particular. Você passa a assumir o papel de passageiro, que sugere que você está apenas de passagem por aquele meio de transporte. Isso faz de você um elemento subordinado ao motorista (também conhecido como "piloto"), figura máxima do universo de duas portas. Outras figuras fazem parte desse universo: o cobrador, o rodoviário, o idoso, o estudante de escola pública, o deficiente, o camelô, o pedinte, o assaltante, o carona, a namorada do piloto...
Como em qualquer universo, cada papel desse é regido por um sistema de normas sociais. Um bom exemplo disso é a namorada do piloto, cuja norma geral é viajar de graça, sentada na capota e conversando com o motorista durante toda a viagem.
Algumas regras servem para todos: devemos ceder o lugar pros idosos, gestantes, deficientes e pessoas com criança de colo; devemos ceder a bolsa pro sujeito que te mostra um canivete ou uma faca... E existe uma questão de extrema importância em uma viagem de ônibus: o espaço visual individual. O cobrador (quando existe) é a quem é permitido o maior espaço visual do veículo. Ele pode olhar em qualquer direção, para quem quiser, sem a menor cerimônia. E ainda pode olhar de cima! Quanto aos que viajam em pé, a regra é simples: todo espaço à frente dos seus olhos é visualmente seu, com direito à um ângulo de 45° de abertura. Complexo mesmo, é o funcionamento dessas regras para passageiros que sentam nos assentos, duplos, que proporcionam demasiada proximidade a pessoas que nunca se viram na vida.
As regras do espaço visual do passageiro sentado são baseadas no princípio de que os vizinhos de assento devem se comportar como se o outro não existisse. Vizinhos de assento têm direito à privacidade individual e a coisa funciona como se houvesse uma mureta entre os dois assentos. Situações na qual um dos vizinhos iniciam um diálogo ou olham para o outro são consideradas como desconfortáveis. Pra facilitar o raciocínio, vamos às ilustrações:

Figura 1
Na figura 1, observamos a área relativa ao espaço visual de cada passageiro: o da janela, em cyan, e o do corredor, em magenta. Essa configuração é a ideal e seu conforto é devido ao fato de que o espaço visual dos vizinhos só se encontra fora dos limites físicos do veículo. Ambos desfrutam do seu espaço sem invadir o espaço do outro.

Figura 2
A figura 2 mostra uma situação na qual o passageiro do corredor invade o espaço visual do passageiro da janela, certamente proporcionando desconforto ao passageiro invadido. Muitas vezes esse tipo de invasão do espaço visual está relacionada a um interesse sexual (invasão latitudinal) ou a um interesse criminoso (invasão focada, localizada no objeto de interesse).

Figura 3
Nesse caso, é o passageiro da janela que invade o espaço visual do passageiro do corredor, provocando o desconforto deste último. É uma invasão mais comum que a anterior, pois pode ser justificada por um interesse do invasor em relação a algo que supostamente aconteceria/existiria no campo de visão da janela do hemisfério oposto. De qualquer maneira, é uma quebra de protocolo que deve ser evitada.
Essas ideias foram baseadas nos modelos dos ônibus cariocas e podem variar de cidade para cidade. Imagino que todo mundo conheça essas regras de forma empírica, mas organizar as informações nunca é demais. ;)